domingo, 4 de setembro de 2016

A Foice e o Marcelo



Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas


Imagem do Kaos




Na passada sexta feira, a gasolina tinha aumentado 40 cêntimos num posto que não vem a ser chamado aqui para nada, mas na Margem Sul. Para mim, que ia no lugar do morto, ou, de quando em vez, no banco de trás, isto era muito, mas creio que para quem conduz ainda fosse mais. Aliás, a ser ainda mais preciso, como os aumentos têm sempre aquela vertente hensenberguiana da experiência e do experimentado, creio que estes mesmos 40 cêntimos de aumento deverão ter tido vários impactos e leituras, consoante e consoado o experimentador e o experimentado, o seu monóculo, e, sobretudo, o seu pendor político. Contudo, numa frase resumida, na passada sexta feira, a gasolina tinha sofrido, como dizia o defunto Vítor Gaspar, um colossal aumento, do qual só eu, distraído e muito bronzeado, terei completamente dado conta.

A coisa pode parecer banal, mas não é, já que nos lembra estar em 2016, ano fausto do centenário de uma das Relatividades, onde, abreviadamente, se diz que tudo depende do referencial e do observador. Acontece que, fosse tal aumento... bom, mais benevolamente, fosse um décimo de tal aumento a ter acontecido no referencial Passos Coelho, e teria imediatamente caído o carmo e a trindade. Como aconteceu na sexta, e o referencial já era a Geringonça, a coisa passou subtil e disfarçadamente nas divagações televisivas das bolsas de branqueamento do Futebol, como tudo o que de negativo está a acontecer também ultimamente tem passado.

Pode acontecer que o que escrevi para trás até seja mentira, ou um simples epifenómeno de uma bomba falida do Seixal, uma miragem, mas, como se sabe, a veracidade dos pretextos, como motivo para as perorações, é sempre indiferente, e eu vou perorar, sendo que o o tema são aqui os dois pesos e as duas medidas da formação da opinião pública, e do crivo da crítica, que sempre deveria presidir à isenção dos órgãos de comunicação social... ou, bom..., como eu hoje até estou parcialmente do contra, às tantas, nem sequer vou falar de nada disto, mas tão só do estado de coisas que conduziu a que estas hipóteses se pudessem agora aventar.

Como se sabe, ao contrário da Agustina e do Saramago, gosto bastante de Alexandre Dumas, e gosto bastante dele e também de uns quantos outros da genealogia da Capa e Espada ("Swashbuckler"), que me fazem sonhar com reconstruções de uma História imaginada, de preferência, ao gosto das minhas próprias fantasias. Ao contrário das estuchas do Saramago, do José Rodrigues dos Santos e quejandos, toda a gente leu os "Três Mosqueteiros", ou, pelo menos, sabe do que se trata, e sonhou um pouco lá por cima, mas também não é disso que eu venho aqui falar, já que o Dumas decerto era muito interessante, quando escreveu esses três, mas ainda mais interessante se iria tornar depois, quando escreveu os três seguintes, na forma dos "Vinte Anos Depois", e são esse vinte anos depois que centrarão esta reflexão.

Para quem ainda não percebeu o que é a "Geringonça", eu explico: a "Geringonça" é uma daquelas perigosas tentações históricas de refazer um período, baseado no tal pressuposto melancólico do isto poderia não ter sido assim, se aquilo tivesse acontecido assado, o que é sempre mentira, mas deixa sempre fazer sonhar aquelas gajas de cabelos salt & pepper e saias rodadas, que constituem a orla feminina das romarias do "Avante", genuína manifestação etnográfica do 13 de Maio do Partido Comunista Português.  Acontece que a "Geringonça" não passa de uma semienvergonhada maneira de dar corpo àquelas conversas e desabafos de café de umas certas classes de pendor intermédio e saudosismos "esquerdistas", que entendem que a história recente de Portugal poderia ter sido substancialmente outra, se os blocos das diferentes "esquerdas" se tivessem oportunamente unido, para dar corpo a sistemas parlamentares de alternância. Lá me desculparão a forma erudita, mas assim permite aos glosadores citarem logo o texto, já numa forma elaborada, sendo que a versão simples é a de que se os gajos já se tivessem entendido, esta merda não estava assim. Veio o António Costa, o Poucochinho Vermelho, ou o Poucochinho Monhé, e a nostalgia ganhou peito, pôs o soutien, e teve a coragem de sair à rua: o seu parto anunciado, como se sabe, veio logo na forma desafinada da "Geringonça".

Até aqui tudo bem, já que, do ponto de vista político, e esquecida a descarada golpada em que assentou, é uma experiência como qualquer outra. Para mim, democrata, malgré tout, preferia que a aventura tivesse sido explicada aos eleitores antes, e não depois, mas, como continuamos a ter uma das mais elevadas taxas de analfabetismo de toda a Europa, creio que a não ser assim não seria nunca, e assim foi, e assim se fez, na santa paz do senhor. Acontece que, ao não corresponder a nada, mas tão só à nostalgia de tentar recompor umas quantas fatias da história recente, a coisa também se tornou logo numa aventura de capa e espada, escrita ao gosto de um tipo conhecido pela intransigência, vaidade e meias águas de goês, o que também não seria nenhuma novidade, já que temos engolido longuíssimas sequências de primeiros ministros provindos de proverbiais sarjetas, e o resultado é, liminarmente, o que estamos forçados a viver, e sobre tal nos ficamos já por aqui. Em resumo, alguém se lembrou de ir buscar uns episódios pós abrilescos, agarrou nos protagonistas de então, caracterizou-os à a maneira do faz de conta de agora, e pô-los em cena, e, repito, nada de novo, não fosse o restante acontecido.

O restante é muito mais engraçado, já que, nestes acasos da Astronomia, enquanto no nadir se nadava assim, já no zénite as coisas piavam de uma forma similada, e só para os desatentos é que este permanente alvoroço e meiguice do Professor Marcelo, eleito capataz da Cauda da Europa também poderiam passar por programa, por que programa é coisa que ali não há, e assim vamos já ao capa e espada do Marcelo Rebelo de Sousa.

Toda a gente conhece o Marcelo Rebelo de Sousa, um vigarista, que vendeu toda a espécie de banha da cobra, naquele poleiro televisivo que lhe tinham arrendado, já não me lembro onde, mas só dos olhinhos deliciados da Judite de Sousa, para quem havia alguma diferença entre um doutorado e um simples contador de doutores, como o lunático que a andava a encornar, mas isso eram outras histórias e outras vidas, e fica para um dia em que eu tenha coisas mais importantes para dizer. Deste conhecimento universal do Marcelo derivou uma eleição de larga margem, na qual, como podem imaginar, não participei, como também não participei na do Sampaio da Nódoa nem de umas quantas outras nódoas que o andavam a rodear, mas também não é por aí por onde eu vou agora.

Acontece que o Marcelo, mal foi eleito, começou a desfolhar o capa e espada que trazia no bolso, e que não era mais do que um guião cheio de marcas e de bolor que dizia o seguinte, eu, Marcelo, venho aqui desempenhar um revivalismo de recomposição da História (os estalinistas chamavam-lhe "revisionismo"), onde tentarei provar aos basbaques que me elegeram, e sobretudo aos basbaques que não me elegeram, nem nunca me elegeriam, que, se não tivesse havido o 25 de abril, e a "primavera" marcelista tivesse continuado (até cair de podre), o nosso pequeno mundo poderia ter sido infinitamente melhor.

Não vou discutir isso aqui, já que é tema de um próximo texto, mas é fundamental que se perceba que o estalinista Marcelo Rebelo de Sousa está a encetar um metódico revisionismo dos anos da Abrilada, de modo a provar que o esteio do Ancien Régime, de onde saiu, é que era bom. O supreendente é que, do outro lado da barreira, o camarada social fascista, Jerónimo de Sousa, também está lançado no revisionismo desses mesmos anos em que as "esquerdas" nunca se entenderiam, e ambas as coisas vão agora de mão dada, num ato de espantação a quem alguém pôs o brilhante nome de "Geringonça", onde a geringonça não é aquilo a que puseram esse nome, mas sim esta milagrosa hipótese de ver ambos os programas delirantes em promiscua convivência.

Eu sei que o escrevi está um pouco para lá do extraordinário, mas,se pensarem um poucochinho monhé, acabarão por ver que tenho alguma razão, sendo que o que é extraordinário é que estas combinações, julgadas impossíveis do ponto de vista sociológico, político, e mais duramente, físico, se estão realmente a manter e a arrastar pelos meses e meses, com a cumplicidade de doçura e assombração dos órgãos de comunicação social, e decerto assim continuarão, até, por si, ou por ação de alguma inesperada bancarrota,  se estampem e afocinhem no chão. A explicação, creio, é que ambos os blocos estão a caminhar como se o vizinho do lado não existisse, o que é muito português, ou, numa versão ainda mais cínica, por que todos descobriram que a bebedeira de um até podia ser útil à bebedeira do outro, e dobraram na dose do álcool, deram a mão, e por ali continuaram.

Tecnicamente, isto conduz a zonas pantanosas de interpretação da realidade, já que na ótica romântica do poucochismo monhé as coisas não são tão más assim, posto estarem a acontecer neste período ímpar de revelação. A verdade é que está tudo na mesma, quando não está pior, e um sinónimo disto é sempre aquele terrível barómetro que entra em cena, de cada vez que desenterram a Leonor Beleza, que, no mínimo, devia ter um pouco de vergonha na cara. A Dívida Pública aumentada também não é uma realidade, mas uma interpretação egoísta e masoquista dos números. Os calamitosos fogos que consumiram metade da área ardida europeia já foram taxados de fenómenos naturais, e andou-se. Crê-se que estes fenómenos naturais sejam uma variante das tradicionais causas naturais, por sua vez, vizinhas próximas dos milagres da fé, e aqui mergulhamos no verdadeiro epicentro deste deslumbramento político, já que, quer a Foice, quer o Marcelo, acham que este tempo único só tem paralelo e procedência por um qualquer caráter divino, no caso do Marcelo, por identificação com o Vigário Francisco, pelo outro, uma por epifania napoleónica de tom goês, que permitiu que numa espécie de pokemon alargado, todas as insanáveis divisões das I, II, III e IV Internacionais subitamente se resolvessem numa simples noitada de coirato da "Festa do Avante". Como diz uma das Mortáguas, "este governo não é um governo de esquerda", e não é, este é um governo da Situação, e da Situação duplamente, pelo lado da Foice e também pelo lado do Marcelo. Acontece que a Situação não está no estado dos "Vinte Anos Depois", mas realmente numa senda caduca de Quarenta Anos Depois, barriga inchada, perna a arrastar e um olho com cataratas, um velho romance novo de cordel, a ser redigido a muitas mãos, por um bando de alucinados, que ainda não percebeu que a História não se corrige, e muito menos se corrige assim.

Em quarenta anos, o Mundo mudou muito. A Foice já se sabia que não tinha percebido; só faltava o Marcelo vir confirmar que também não. Dizem os pessimistas que, quando acordarem, todos cairão no chão, Eu sou ainda mais pessimista, e acho que não é no chão que eles vão cair, mas bem em cima das nossas cabeças...




(Quarteto do Avante, Marcelo, avante, no "Arrebenta-SOL" (desativado), no "Democracia em Portugal", no "Klandestino" e em "The Braganza Mothers", opulento e nada revisionista, exceto em casos de necessidade extrema)
 
 

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